A informação foi obtida com exclusividade pela CNN Brasil e divulgada nesta quarta-feira que afirmar: o custo total dos contratos mais caros foi de R$ 782,4 mil aos cofres públicos.
Uma empresa de Minas Gerais vendeu ao laboratório do Exército Brasileiro (LQFEx) ao menos dois lotes de insumos importados para a fabricação de cloroquina por um valor 167% mais alto do que ela mesma tinha cobrado em venda à mesma instituição dois meses antes. O custo total desses contratos mais caros foi de R$ 782,4 mil aos cofres públicos.
Documentos obtidos com exclusividade pela CNN revelam que o laboratório do Exército não contestou formalmente esse aumento no preço e só cobrou explicações por escrito à empresa depois de a compra, já finalizada, ter virado alvo de uma investigação no Tribunal de Contas da União (TCU).
Na semana passada, a Procuradoria-Geral da República também recebeu uma denúncia sobre a compra e analisa se vai instaurar inquérito. Para especialistas, a falta de justificativa para o aumento de preço dentro de um processo de compra pública pode configurar improbidade administrativa.
O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército já fabrica a cloroquina há anos para tratamento de malária, mas entrou em evidência em 2020 ao ampliar a produção para atender às demandas de distribuição do Ministério da Saúde de tratamento para a Covid-19. O remédio não tem eficácia comprovada contra a doença.
O grupo Sul Minas, representado pelas empresas Sul Minas Suplementos e Nutrição e Sul de Minas Ingredientes, forneceu ao Exército 300 kg de difosfato de cloroquina, a base do remédio, por R$ 488/kg no mês de março de 2020, mesmo preço de um registro licitado em 2019.
Dois meses depois, em maio, a mesma empresa vendeu 600 kg do produto ao governo por R$ 1.304/kg, sob a alegação de que os custos internacionais subiram, já que ela não fabrica o insumo, mas somente o importa da Índia.
Marcelo Luis Mazzaro, um dos responsáveis pela empresa, alegou em carta ao laboratório no dia 21 de julho, depois da venda, que a fabricante e fornecedora do produto, a IPCA, teria elevado seu preço em 300% em março de 2020 e em 600% em abril, somado ao aumento de 300% no custo do frete internacional e a variação cambial de 45%.
Isso justificaria a diferença de preços. Os valores absolutos resultantes dessas variações não são apresentados. A primeira venda ao Exército, com valor ainda de R$ 488/kg, teria acontecido somente porque a empresa optou por não repassar esses aumentos à instituição à época, escreveu Mazzaro.
Mas a própria Sul Minas admitiu, tanto na carta enviada após a venda quanto em e-mails trocados com o Exército durante as negociações, que ela tinha estoque do material desde março, mesmo mês em que aceitou negociar o produto pelo valor mais barato.
A informação era de conhecimento do governo e estava nos orçamentos. Além disso, uma parte dos insumos (100kg) não foi importada, mas sim comprada pela Sul Minas no mercado interno em data e valores não divulgados, segundo informação fornecida pela própria empresa. Todos os documentos foram obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
A negociação dos 600 kg ao preço mais caro se desenrolou em duas etapas, explicou a empresa. Na primeira, em 13 de abril de 2020, depois de ser procurada pelo Exército, a Sul Minas alegou inicialmente que não possuía nenhum estoque e ofereceu um preço de R$ 2,2 mil/kg para importar os insumos, mas o valor foi recusado. Na segunda vez, no dia 30, a empresa melhorou a oferta para R$ 1.304/kg.
A justificativa para a redução repentina no preço foi de que eles passaram a ter um estoque sobrando de 500 kg do material depois de o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos) ter cancelado uma licitação deste produto da qual a Sul Minas participaria.
A CNN tentou obter esclarecimentos com a Farmanguinhos sobre o cancelamento, mas o laboratório disse apenas que a aquisição de cloroquina está sendo “reavaliada.”
Os 600 kg do insumo foram vendidos ao Exército em duas partes: os primeiros 100 kg, adquiridos pela empresa no mercado interno, no dia 13 de maio, e os outros 500 kg, da licitação cancelada com a Farmanguinhos, no dia 20.
Em nenhuma dessas negociações o laboratório do Exército cobrou que a Sul Minas fornecesse notas de entrada do material no Brasil que comprovassem quanto a empresa pagou pelo produto ou a data em que fez essas importações e compras no mercado interno.
Também não consultou os fabricantes na Índia para verificar qual foi a variação de preços do insumo que teriam afetado os custos cobrados pela empresa brasileira.
Os primeiros questionamentos formais do laboratório do Exército à empresa mineira só aconteceram em julho, depois que o certame virou alvo de questionamentos do TCU, cuja tramitação corre em sigilo, em resposta a um pedido formalizado pela CNN por meio da Lei de Acesso à Informação.
Também há uma denúncia em análise pela Procuradoria-Geral da República (PGR) protocolada pela deputada federal Natália Bonavides (PT-RN), que pede a responsabilização dos ministros da Saúde e da Defesa pela compra dos insumos e fabricação do medicamento.
O e-mail do laboratório do Exército que pediu esclarecimentos à Sul Minas foi enviado no dia 20 de julho e a empresa respondeu no dia seguinte, dois meses depois de ter vendido o material ao governo. As tratativas, segundo o laboratório, teriam acontecido antes por telefone.
A Sul Minas admitiu na resposta ao e-mail que efetuou as compras em março com a IPCA – informação que já havia sido dada durante o processo de venda -mas defendeu que já naquele mês os custos internacionais teriam subido.
Não foi apresentada nenhuma prova sobre a alegação de aumento dos custos com a fabricante da Índia, com o argumento de que tais informações são um segredo comercial. O Exército não contestou a resposta e nem fez novas perguntas.
A empresa afirmou que houve um grande aumento nos preços do produto na Índia, que teria variado de US$90 em 2019 para US$ 250 em 2020, além do aumento do frete e variação do dólar. Disse ainda que procurou oferecer a melhor proposta ao Exército dentro das condições de mercado.
O grupo afirmou ainda que teve um ganho pequeno com a negociação, de cerca de 10% do valor total, e que quem é responsável pela gestão do dinheiro público é o Exército, caso haja qualquer indício de irregularidade na compra.
À reportagem , o diretor de compliance da fabricante IPCA Harish Kamath disse que não pode responder por variações de preços no Brasil e que não tinha informações específicas, mas confirmou as alegações da Sul Minas de que houve variações no mercado por causa dos custos com frete aéreo e elevação de custos em geral.
Afirmou ainda que a IPCA sofreu com dificuldades para comprar matéria-prima e que seus fornecedores chineses estão cobrando mais caro. O representante disse que não informaria os preços das transações com a Sul Minas ou qualquer cliente pois são informações protegidas por acordos de confidencialidade.
Sem licitação – Por causa da pandemia da Covid-19, o processo de compra na administração pública no Brasil passou a permitir a dispensa de licitações na “aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.”
Para adquirir os insumos da cloroquina, o Exército fez uma consulta de preços que avalia possibilidades como o painel de preços do governo federal, contratações similares, pesquisa em mídia especializada e pesquisa com fornecedores.
A única concorrente da Sul Minas que foi considerada no certame, procurada em 27 de abril pelo laboratório do Exército, foi a empresa MCassab, que fez uma oferta mais cara, de R$ 1,8 mil por quilo.
A empresa concorrente da Sul Minas não tinha material em estoque para vender e disse, em sua proposta, que a venda estava sujeita à importação e aos prazos da fornecedora IPCA, na Índia. Procurada, a MCassab não quis comentar.
Já a pesquisa de preços no sistema do governo resultou em um registro de preço da própria Sul Minas, do ano anterior, de R$ 488, e foi descartada automaticamente pelo órgão público por considerar o valor “inexequível” diante da realidade do mercado, embora não haja, no processo, consulta aos preços praticados pelas empresas que fabricavam o material à época.
O processo das compras incluiu ainda uma imagem de tela (printscreen) de um site chamado Made-in-China, que se descreve como fornecedor de “informações mais completas, precisas e atualizadas sobre produtos chineses e fornecedores chineses disponíveis de qualquer lugar em web”, com preço do insumo a US$ 300, valor mais alto que o negociado com a Sul Minas.
Um especialista que trabalha contratos do setor público e pediu para não ser identificado disse que, diante da alta de preços e da suspeita de superfaturamento, o Exército deveria ter cobrado que a empresa abrisse os custos de importação. “Se há qualquer indício de que a empresa está superfaturando, deveriam pedir acesso à nota fiscal de compra do contratado para comparar com o valor que foi vendido”, disse.