Contrato assinado pela Univaja dá direito exclusivo para empresas estrangeiras e brasileira comercializarem SbNs na terra indígena.

Ministério Público Federal) ajuizou uma ação civil pública para anulação de um contrato de comercialização de Soluções Baseadas na Natureza (SbN) na Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas.
No contrato, assinado em 2022 a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) se denomina como proprietária do território e concede à empresa brasileira Comtxae, à empresa espanhola Biotapass, e à empresa argentina Biota o direito exclusivo de registrar, certificar e comercializar as SbNs dentro do território indígena.
A investigação do MPF teve origem em denúncias de lideranças indígenas do povo Mayuruna, em dezembro de 2022, que reportaram a presença de empresários colombianos no local sem o consentimento das lideranças e sem as devidas autorizações da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) para propor projetos de crédito de carbono.
A fundação confirmou ao MPF que as empresas não tinham autorização para entrada na terra indígena. Após análise técnica do contrato firmado pela Univaja com as empresas, a Funai identificou fortes indícios de violações aos direitos indígenas e diversas irregularidades e ilegalidades, incluindo:
Violação ao regime jurídico das terras indígenas: o contrato se refere à Univaja como ‘proprietária’ do Vale do Javari, quando as terras indígenas são bens da União de usufruto exclusivo dos povos indígenas.
Ausência de autorização da Funai: as empresas ingressaram na terra indígena sem autorização e a Coordenação Regional do Vale do Javari (CR-VJ) não foi consultada nem participou da celebração do contrato. A entrada de terceiros e a negociação de contratos de exploração de recursos necessitam de autorização expressa da Funai.
Violação à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI): há dúvidas se os indígenas foram plenamente esclarecidos sobre termos técnicos e as implicações do acordo, sendo que a CLPI deve ser um processo contínuo e abrangente, realizado com toda a comunidade.
Limitações indevidas aos usos tradicionais: embora o contrato mencione a preservação do território, ele simultaneamente limita as condições de subsistência dos povos indígenas, como caça, pesca e extração de madeira, enquanto garante às empresas o direito de fazer um levantamento detalhado de toda a área.
Risco a povos indígenas isolados: a abrangência do contrato sobre a totalidade da Terra Indígena Vale do Javari, que possui o maior registro de povos em isolamento voluntário no Brasil, levanta sérias preocupações sobre o risco de contato e consequências devastadoras.
Prazo do contrato: o prazo de dez anos de vigência do contrato contraria as recomendações de prazos menores e a limitação de contratos de prestação de serviços a quatro anos, conforme o Código Civil.
Na ação, o MPF requer que a Justiça Federal determine a suspensão imediata de todos os efeitos do contrato e a paralisação de todas as atividades de registro, certificação e comercialização de Soluções Baseadas na Natureza (SbN) na Terra Indígena Vale do Javari.
Segundo o MPF, o contrato, de modo geral, possui cláusulas amplas que concedem poderes irrestritos para as empresas formularem e comercializarem projetos sem qualquer participação das comunidades indígenas que habitam a terra indígena, o que demonstra a desproporcionalidade do pacto celebrado.
O que o contrato permite
O contrato confere às empresas Biotapass, Comtxae e Biota o direito de “acompanhar e supervisionar, presencial e remotamente, a floresta e os ecossistemas do Território”. O MPF aponta, na ação, que cabe à União a competência de fiscalizar e proteger tais territórios, por meio de órgãos públicos como a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Para o MPF, ao conceder a empresas privadas e estrangeiras a prerrogativa de fiscalizar e supervisionar a Terra Indígena Vale do Javari, o contrato viola a soberania nacional, usurpa função pública indelegável e restringe indevidamente o usufruto indígena. Além disso, a previsão de acompanhamento presencial da totalidade da terra indígena, de quase nove milhões de hectares, sem a mediação da Funai, expõe povos indígenas isolados a riscos de contato forçado, em afronta à Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e às diretrizes da própria Funai. Trata-se, assim, de cláusula nula de pleno direito, que reforça a invalidade integral do contrato.
“A continuidade dos termos do contrato pode levar à exploração predatória dos recursos, à usurpação de conhecimentos tradicionais, à criação de conflitos internos, à invasão de áreas de povos isolados, e a danos culturais, sociais e ambientais irreversíveis. A ausência de fiscalização adequada e a falta de transparência na gestão dos recursos agravam a situação”, alerta o procurador da República Guilherme Diego Rodrigues Leal, titular do 1º Ofício do MPF em Tabatinga, responsável pela ação.
Além da suspensão do contrato e da paralisação das atividades, o MPF pede, ao final da ação, a declaração da nulidade do contrato e a condenação da Univaja e das empresas ao pagamento de R$ 10 milhões por danos morais coletivos.
O que são SbNs
A União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) define as Soluções baseadas na Natureza (SbN) como “ações para proteger, gerir sustentavelmente, e restaurar ecosssistemas naturais ou modificados, que abordam os desafios sociais de forma eficaz e adaptativa, proporcionando simultaneamente benefícios para o bem-estar humano e biodiversidade”. Os relevantes desafios sociais incluem mudanças climáticas, segurança alimentar, redução de riscos de desastre e segurança hídrica.
A definição da Comissão Europeia para SbN declara que são “soluções inspiradas e sustentadas pela natureza, que são economicamente viáveis, proporcionam benefícios simultaneamente ambientais, sociais e econômicos e ajudam a aumentar a resiliência; estas soluções trazem um número maior e mais diversificado de características e processos naturais e da natureza às cidades, paisagens terrestres e marinhas, através de intervenções adaptadas aos locais, eficientes em termos de recursos e sistêmicas”.
Sobre o Vale do Javari
A área afetada pelo contrato é a Terra Indígena Vale do Javari, o segundo maior território indígena do país, com 85.444 km² de Floresta Amazônica. Ela abriga o maior número de povos indígenas em isolamento voluntário no Brasil. Atualmente, a Univaja é a principal articulação dos povos e organizações indígenas que vivem na região e é acompanhada por oito associações de base: Organização Geral dos Mayuruna (OGM), Associação Kanamary do Vale do Javari (Akavaja), Associação de Desenvolvimento Comunitário do Alto Rio Curuçá (Asdec), Organização das Aldeias Marubo do Rio Ituí (Oami), Associação Indígena Matis (Aima), Cooperativa de Preservação Etnoambiental Autônoma dos Kanamari da Aldeia São Luís (Copeaka), Associação Ibá Kulina do Vale do Javari (Aikuvaja) e Associação Marubo de São Sebastião (Amas).
Em 2022, o local ficou mundialmente conhecido devido ao assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips que estavam em missão na região.
A Ação Civil Pública é de nº 1000824-97.2025.4.01.3201.