Governo quer enviar ao Congresso no início de 2020 uma reforma administrativa que reduza os salários iniciais, torne mais gradativa a evolução na carreira e atrele a progressão a avaliações de desempenho.
Sob o argumento de que o funcionalismo, em especial o da União, é caro e privilegiado, o governo de Jair Bolsonaro quer enviar ao Congresso no início de 2020 uma reforma administrativa para reformular as carreiras públicas, projeto que vem sendo chamado também de novo RH do Estado. Os gastos com pessoal ativo — que devem fechar o ano acima de R$ 300 bilhões — é o terceiro maior da União, atrás de Previdência Social e juros da dívida pública.
Guedes tem um importante aliado nessa empreitada: o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, é antigo defensor da pauta. Ambos consideram que os servidores — com destaque para carreiras exclusivas de Estado como gestão tributária, Justiça, diplomacia — já começam ganhando alto para padrões brasileiros e progridem rapidamente para o teto de remuneração de cada categoria.
Nesse sentido, eles querem uma reforma que reduza os salários iniciais, torne mais gradativa a evolução na carreira e atrele a progressão a avaliações de desempenho. Também defendem flexibilizar as regras de estabilidade para facilitar a demissão em casos de baixa produtividade — essa última proposta sofre críticas inclusive de economistas liberais que consideram o mecanismo uma defesa contra perseguição política.
No Poder Executivo, algumas das carreiras que se destacam pela elevada remuneração paga aos recém-concursados são as de delegado da Polícia Federal (R$ 23.692,74), auditor-fiscal da Receita Federal (R$ 21.029,09), advogado da União (R$ 21.014,49), diplomata (R$ 19.199,06) e analista do Banco Central ou de Planejamento e Orçamento (R$ 19.197,06). São valores que colocam esses servidores entre os brasileiros mais ricos, no instante que ingressam na carreira.
De acordo com a Oxfam, organização internacional que atua na redução de desigualdades, trabalhadores com salário mensal a partir de R$ 15 mil já estão entre os 2% de maior renda no país, quando consideradas pessoas de mais de 18 anos que possuam alguma fonte de recursos. Já uma remuneração a partir de R$ 23 mil coloca o indivíduo entre o 1% mais rico.
Esses dados foram extraídos, a pedido da BBC News Brasil, de uma calculadora criada pela Oxfam com dados oficiais do IBGE e da Receita Federal para evidenciar a diferença de renda e do peso dos impostos sobre diferentes extratos sociais no país.
Para Rodrigo Maia, os ganhos iniciais altos e a rápida progressão permitida em algumas carreiras reduzem o “estímulo” para que o servidor público se esforce mais.
“Tem uma cúpula (de servidores) dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) que começa já ganhando perto do teto (do funcionalismo, hoje em R$ 39 mil). Então, eu pergunto: não é correto, em vez de a pessoa começar ganhando R$ 25 mil, ela começar ganhando R$ 12 mil, R$ 15 mil, que para o Brasil já é uma grande salário?”, questionou Maia, em entrevista em outubro ao programa Poder em Foco, do SBT.
Elite dos servidores começa ganhando mais que profissionais com doutorado
Os salários pagos à elite do Poder Executivo não estão apenas muito acima da renda per capita do país (R$ 1.373, segundo o IBGE), mas superam também largamente a de pessoas altamente escolarizadas. De acordo com o Relatório Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério da Economia, a remuneração média de profissionais com doutorado no Brasil, seja no setor privado ou público, estava em R$ 12.141 em dezembro de 2018.
Mas há salários iniciais ainda mais altos nos Poderes Judiciário e Legislativo. A remuneração mais baixa oferecida hoje para juízes federais no Brasil é de R$ 32 mil, mesmo patamar oferecido pelo Senado Federal como salário de entrada para o cargo de consultor legislativo.
“Legislativo e Judiciário sempre tiveram mais liberdade para reajustar que Executivo, pois têm um número menor pessoas, então o impacto fiscal não é tão grande. Eles acabam conseguindo reajuste e aí, na sequência, as categorias mais fortes do Executivo, como Polícia Federal e Receita, pressionam também para não ficar muito atrás”, ressalta.
No entanto, o Ministério da Economia não esclareceu se a reforma atingirá apenas os servidores da União, ao ser questionado pela BBC News Brasil. Apenas o STF e o Congresso podem dar início a projetos de lei que alterem as carreiras dos servidores do Judiciário e do Legislativo, respectivamente. No entanto, o governo tem sinalizado com o envio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) — nesse caso, a reforma poderia atingir funcionários de todos os Poderes.
Resistência e críticas à reforma
Na tentativa de reduzir resistências dentro do funcionalismo e questionamentos jurídicos sobre direitos já adquiridos, o governo tem dito que as mudanças valerão apenas para servidores contratados após a reforma. Ainda assim, a proposta vem sofrendo grande oposição dentro do funcionalismo e, por isso, seu envio ao Congresso, previsto inicialmente para outubro, foi adiado para o ano que vem.
Líderes de associações de servidores reconheceram que algumas categorias têm salários de partida elevados e que é possível melhorar os sistemas de avaliação de desempenho. No entanto, argumentam que um bom patamar de remuneração é importante para atrair bons quadros para o funcionalismo e temem que a reforma defendida pelo governo precarize o serviço público prestado à população. Eles ressaltam que há pessoas que entram no serviço público já no meio da carreira, tendo experiência profissional e pós-graduação.
No governo anterior, do presidente Michel Temer, a equipe econômica chegou a defender um limite de R$ 5 mil para o salário inicial dos servidores. Segundo estimativa divulgada em outubro pelo Banco Mundial, se fosse adotado esse teto para e também alongado o tempo necessário para se chegar a ganhos mais altos, a União economizaria R$ 104 bilhões até 2030.
No mesmo documento, o Banco Mundial apontou que os os servidores públicos federais brasileiros ganham quase o dobro (96% a mais) do que os trabalhadores do setor privado com mesma escolaridade. A maioria do funcionalismo, porém, trabalha para municípios, onde os salários são similares aos do setor privado, aponta o estudo. Segundo o Ipea, os servidores municipais ganhavam em média R$ 3 mil em 2016.
O documento do Banco Mundial vem sendo citado pela equipe de Paulo Guedes para defender a reforma administrativa. Opositores da proposta do governo, por sua vez, criticam a metodologia usada no estudo argumentando que carreiras típicas de Estado não têm correspondente na iniciativa privada.
“Essa comparação é totalmente descabida. Você vai comparar um diplomata com que trabalhadores da iniciativa privada? Com quem você vai comparar um auditor da Receita Federal? Só ele tem prerrogativas da política tributária”, afirma Rudinei Marques, presidente do Fonacate (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado).
“Quem vai gerir R$ 3 trilhões (orçamento do governo federal)? É muito pagar para um servidor desse R$ 15 mil, R$ 16 mil como salário inicial? Acho que não”, reforça, em referência à remuneração líquida inicial de carreiras que administram as contas federais.
‘São bons profissionais, mas não gênios’
O professor da FGV Direito SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, Carlos Ari Sundfeld, contesta o argumento de que salários de carreiras de Estado não possam ser comparadas com o setor privado. Para ele, a remuneração no serviço público deve ser similar a dos demais trabalhadores com escolaridade parecida.
“Eles (elite do funcionalismo) argumentam que os salários têm que ser extraordinários porque eles são extraordinários, fora do normal. Isso é um delírio. São bons profissionais, mas não se trata de um universo de gênios”, crítica.
Trabalhador sem diploma ganhando mais que graduados
As carreiras com maiores salários exigem curso superior para participar do concurso. No entanto, uma pesquisa na tabela de remuneração dos servidores federais, disponível no site do Ministério do Planejamento, permite encontrar carreiras de nível intermediário (que não exigem ensino superior) com salários iniciais também bem acima da média nacional.
O piso pago aos técnicos do Banco Central, cujo concurso exige apenas nível de Ensino Médio completo, é de R$ 7.283,31. Já no Ipea, auxiliares administrativos, secretárias e motoristas começam ganhando R$ 6.623,58.
São valores que superam a média da remuneração dos trabalhadores com graduação no país (R$ 6.004, segundo a Rais).