Família de vítima fala de morte em hospital de Itacoatiara, terceira maior cidade do estado com mais de 100 mil habitantes, com uso do medicamento proxalutamida contra a Covid-19 – remédio para tratamento de câncer
Reportagem publicada neste domingo (19) pelo jornal carioca O Globo e assinada pelos jornalistas Johanns Eller e Victor Silva, informa que no Hospital Regional de Itacoatiara, a 270 km de Manaus, os pacientes foram tratados contra o coronavírus com o remédio que seria capaz de reduzir as mortes em três ou quatro dias: a proxalutamida, usada de forma experimental contra o câncer de próstata.
Segundo a reportagem, a medicação foi receitada pelo presidente da rede particular de saúde Samel, Luís Alberto Nicolau, que anunciou a aplicação do medicamento em uma entrevista transmitida pelo YouTube da porta do Hospital Regional de Itacoatiara.
“Trouxemos a medicação para ser utilizada em todos os pacientes”, disse Nicolau, que é irmão de um deputado estadual do PSD e pré-candidato ao governo do estado chamado Ricardo Nicolau, informa a matéria do Globo.
Ainda segundo o jornal do Rio, ele disse ter sido chamado pelo prefeito da cidade, Mário Abrahim (PSC), para socorrer a população e que estava na cidade com médicos para treinar a equipe dos hospitais a aplicar o remédio.
Ele teria explicado que os resultados dos estudos com a proxalutamida ainda não havia m sido publicados —o que, na prática, significava que não tinham sido validados por ninguém além deles próprios.
“Nós não queremos esperar. Queremos colher os benefícios agora, porque estamos aqui com 106 pacientes internados e eles não vão esperar 30, 60, 90 dias.”
De acordo com o jornal, uma das pacientes, a aposentada Zenite Gonzaga da Mota, teria sido internada “andando e se sentindo bem, só para fazer exames”, de acordo com a sua sobrinha Alessandra Saar.
Até então, ela estava sendo tratada normalmente com antibióticos, dipirona e oxigenação, e se sentia bem, mas como outro doente com sintomas leves foi liberado cinco dias após tomar o “remédio da Samel”.
A família concordou em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para incluí-la no estudo, mas que não fornecia formações obrigatórias detrminadas pelo regulamento do Conselho Nacional de Saúde nesses casos.
O documento não dizia que parte dos voluntários receberia placebo, nem descrevia os riscos e benefícios de participar do trabalho. A promessa do “dr. Michael” – Michael Correia Nascimento, do corpo clínico do hospital – era curar Zenite também em cinco dias, mas não foi o que teria acontecido, diz a reportagem.
No início, os famliares não teriam percebido nada de estranho no tratamento. “Eles falaram que era uma medicação que tinha salvado vidas na Samel Manaus”, diz Alessandra, que fala para os jornalistas do Globo que não ficou com uma segunda via do documento assinado”.
O estudo também não tinha autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, segundo a matéria, e o endocrinologista Flavio Cadegiani, que liderou os estudos, potocolou um pedido de autorização para o ensaio, mas para ser feito em Brasília.
A reportagem afirma que a Conep negou autorização para estender o ensaio clínico ao Amazonas, pois a emenda não poderia ter sido realizada após o início do estudo.
Os pesquisadores anunciaram em uma live resultados supostamente fantásticos, com eficácia de 92% em pacientes graves. Segundo eles, 141 haviam morrido no grupo placebo, enquanto só 12 no grupo que havia tomado o remédio. Posteriormente, informaram à Conep 178 mortes no total e, por fim, 200 óbitos.
A aposentada e seus familiares não sabiam dessas informações. Mas perceberam que o novo tratamento não estava adiantando porque Zenite começou a ter falta de ar, e, de acordo com a sobrinha, ficou com braço roxo, bolhas subcutâneas e arritmias.
“Mesmo assim eles não pararam com as medicações. Aquilo foi um extermínio. Eu presenciei. Todos os dias via as pessoas morrendo ao lado (da minha tia). As pessoas estavam bem, conversando, e de repente pioravam. Os médicos não aceitavam questionamentos simples nossos”, lembra Alessandra.
Naqueles dias, Zenite teve duas paradas cardíacas. Os acompanhantes insistiram para transferi-la para Manaus, mas o médico Michael Nascimento não permitiu.
“A gente percebia que eles estavam segurando os pacientes em Itacoatiara por causa do estudo”.
Só depois de 34 dias de internação, o médico autorizou a remoção, mas já foi tarde demais e ela morreu em 13 de março, três dias depois de dar entrada no Hospital Delphina Aziz, na capital amazonense.
A família só descobriu que o remédio que Zenite aspirava em Itacoatiara era cloroquina depois de requisitar o prontuário dela. Foi aí que a filha denunciou o caso à Polícia Civil. Mas o inquérito — que apura só a nebulização de cloroquina e não o uso de proxalutamida — até hoje não foi concluído.
A reportagem também procurou o médico Michael Correia Nascimento, mas ele não atendeu às ligações e ignorou as mensagens enviadas. A rede Samel não respondeu aos questionamentos do jornal O Globo. O prefeito de Itacoatiara, Mário Abrahim, não retornou as ligações para os jornalistas que escreveram a matéria e Secretaria de Saúde da cidade não atendeu as ligações.
Fonte: jornal O Globo